NOVO BLOG

Caro leitor, continuo escrevendo aqui: http://bolchevista.blogspot.com.br/, um blog menos prolixo e (espero) mais dinâmico.

Sobre as declarações de Eliana Calmom


            Nem pecadilho, nem o mais escabroso pecado. Eliana Calmon somente foi sincera e quebrou um tabu da classe mais corporativa dessa república de bananas: admitir a própria fraqueza.

            A magistratura é, de longe, a categoria mais fechada e altiva do Brasil. Quiçá do resto do mundo, à vista de algumas prerrogativas que beiram as qualidades divinas.

            A corregedora do Conselho Nacional de Justiça e Ministra do Superior Tribunal de Justiça aqui comentada nada mais fez do que exercitar a virtude mais nobre do homem civilizado, no alto de seu cargo: a humildade.

            Humildade para reconhecer que sua classe, por mais fidalga que possa ser e parecer, não está imune à corrupção, e que por isso merece submissão externa a órgão hierarquicamente superior à própria corregedoria dos tribunais, local, aliás, onde velhos camaradas se auto-investigam, num brando mise en scène.

            Eis o papel ‘quixotesco’ do CNJ, controlar a atuação administrativa e financeira dos demais órgãos do Poder Judiciário e supervisionar o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Nada que possa apavorar àqueles que trabalham com probidade.

            Tudo para evitar a palavra mais amaldiçoada num estado democrático de direito: impunidade – que na corregedoria dos tribunais pode se confundir com corporativismo.

            Mas ela só disse o que todos já sabem: que existem bandidos em todas as profissões, inclusive na magistratura.

            Para se ter dimensão das palavras de Eliana Calmon, basta verificar uma outra declaração sua, de que só conseguiria inspecionar o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no dia em que ‘o sargento Garcia prender o Zorro’. Ou seja, nunca.

            Em outras palavras, a baiana nada mais fez do que esclarecer que certos órgãos do Poder Judiciário (notadamente os tribunais de justiça, com suas corregedorias) são absolutamente invioláveis, e, por conseguinte, poderiam agasalhar certos pecadilhos (agora parafraseando o Ministro Marco Aurélio).

                        Com toda a certeza o Conselho Nacional de Justiça não afastou 49 magistrados à toa, que só foram extirpados de suas funções judicantes graças a um órgão externo e independente das corregedorias de seus respectivos tribunais de justiça.

            Como era de se esperar de uma classe orgulhosa, a autocrítica realizada por Eliana não soou bem entre seus pares, que rapidamente a desacreditaram.

Como a verdade dói, Cezar Peluso logo tratou de capitanear a reação corporativa, tomando as dores de todos os magistrados escondidos atrás das togas.

E o mais faceto nessa história é que Cesar Peluso, o atual grão duque do Poder Judiciário, é oriundo justamente do Tribunal de Justiça de São Paulo, aquele que só será inspecionado pelo CNJ quando o Zorro fosse encarcerado pelo sargento Garcia.

            Mas a questão aqui comentada revela-se politicamente mais relevante do que juridicamente, merecendo enfrentamento na vindoura reforma política germinada no legislativo federal.

            Se a atuação do CNJ está ou não agasalhada pela Constituição Federal de 1988, pouco importa para nós, reles mortais (afinal, isso é incumbência do STF). O que nos importa é que sua atuação é salutar para a transparência do Poder Judiciário, mitigando o nefasto corporativismo que ali impera, e para não se criar instituições biônicas, que por serem indevassáveis podem se postar acima inclusive da Constituição Federal.

Nenhuma instituição merece possuir a prerrogativa da inviolabilidade, nem mesmo o distinto Poder Judiciário. A transparência há de prevalecer assim como a fiscalização por órgão externo, obviamente dentro de parâmetros que prestigiem a independência judicante da instituição censurada.

            No mais, chega a ser interessante observar a polvorosa reação de certos membros do judiciário quando diante da possibilidade de limitação de suas prerrogativas funcionais.

            Afinal, quem é Deus certamente não quer ser alçado à condição de semi-Deus. Ou como diria o companheiro Tejo, censores certamente não desejam ser censurados.

            Enfim, o que esperar de uma classe que não consegue sequer superar suas próprias contradições? Onde certos Ministros do Supremo Tribunal Federal possuem dez seguranças, enquanto certas juízas de São Gonçalo/RJ não possuem nenhum. Sentimento da própria fraqueza não espero.

Ainda bem que existe uma baiana arretada que não possui medo de tocar na ferida e humildemente assumir a falibilidade de sua categoria. Aposto que são os efeitos do acarajé.

Magistrados não são deuses. Como seres humanos, são corruptíveis. E suas instituições não são invioláveis. Admitir isso não é pecado, é lucidez.

Sobre política, moral e Francis Bacon

       Francis Bacon, como revelam os livros de filosofia, desde menino fora educado para ingressar na carreira política e projetar-se nos cargos públicos. Pois assim a história se escreveu, conquistando ele os mais importantes postos do reino britânico.

Certa vez li – e não me lembro onde – uma frase de sua autoria mais ou menos assim: ‘é impossível compatibilizar política e moral’.

Uma afirmação que cairia em descrédito apenas por sua generalização, se não fosse a pessoa quem a proferiu, cuja educação desde tenra idade orientou-se para sua projeção à vida pública.

Ora, para alguém como Francis Bacon – repita-se, que foi orientado desde criança a ser agente político – sentenciar algo desta natureza e profundidade é porque algum fundo de verdade, ainda que mínimo, existe.

Mas para entender como Bacon chegou a essa conclusão, há de se compreender seu método de interpretar a realidade: técnica chamada pelos estudiosos de método indutivo de investigação científica.

Em suma, para o filósofo, a descoberta de fatos verdadeiros não depende do raciocínio silogístico, como pensado por Aristóteles, mas sim da observação e da experimentação regulada pelo raciocínio indutivo, baseado na observação rigorosa dos fenômenos naturais, na organização dos dados recolhidos empiricamente, na formulação de explicações gerais (hipóteses) do fenômeno estudado e na formulação de experimentações que comprovem referidas hipóteses.

Aliás, essa foi a grande contribuição de Bacon para a história da ciência moderna: apresentar o conhecimento científico com o resultado de um método de investigação capaz de conciliar a observação dos fenômenos, a elaboração racional das prováveis teorias e a experimentação controlada para comprovar as conclusões obtidas.

Não que eu veja na filosofia baconiana uma verdade absoluta, pelo contrário, ela é falível, assim como o método aristotélico que a antecedeu. A disposição ordenada dos dados nas três etapas do raciocínio baconiano nem sempre levam à hipótese correta. O que quero dizer é que para Bacon concluir algo é porque no mínimo utilizou uma técnica racional para tanto, ainda que precária.

Política e moral são inconciliáveis, segundo o filósofo em comento. Que fique claro que também não estou aqui alçando esta locução à condição de dogma, pelo contrário, penso que é uma comparação um tanto quanto imprópria.

No campo da moral temos sempre a polaridade bem e mal, dois opostos incompatíveis. No campo político, penso que esses referenciais morais caem no maniqueísmo, de modo que aquilo que me é semelhante é bom e tudo que me é diferente é mau.

Disse Maquiavel que fazer política não é necessariamente fazer o bem. E o mal necessariamente não seria imoral.

Desta feita, cotejar política e moral afigura-se ininteligível, porquanto não são fatores que se excluem, como reflexionou Bacon, mas se completam e confundem-se.

Entretanto, à vista dos últimos acontecimentos nos Ministérios dos Transportes, da Agricultura, das Cidades, do Desenvolvimento Agrário, Minas e Energia e, agora, Turismo[1], e se entendermos política e moral como dois fatores que se excluem, a afirmação de Bacon chega próxima à verdade, ainda mais se considerarmos seu método de percepção da realidade, mormente a observação dos fenômenos e a elaboração racional das prováveis teorias.

Faltaria apenas a experimentação controlada, mas receio que qualquer experiência neste sentido no âmbito do Poder Executivo poderia levar à lastimosa conclusão de que o ser humano é corruptível por natureza, ou que o poder político é fator único e suficiente para a existência da corrupção.

Mas prefiro pensar que Bacon e seu método estão errados, e o que vemos hoje na explanada dos ministérios em Brasília é a mais pura exceção.



[1] No Ministério dos Transportes é apontado um suposto esquema de propinas que beneficiava o Partido da República (PR), da base do governo. Este escândalo já derrubou o próprio ministro e atual senador Alfredo Nascimento (PR) e cerca de 20 funcionários do Ministério.

No Ministério da Agricultura são denúncias de “cabide de emprego” na Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) de políticos ligados ao PMDB e desvio de dinheiro público.

No Ministério das Cidades as denúncias apontam que o ministro Mário Negromonte (PP) favorecia empreiteiras que contribuíam com as campanhas eleitorais de seu partido. O Ministério liberou obras irregulares proibidas pelo próprio Tribunal de Contas da União.

No Ministério de Minas e Energia, cujo ministro também é indicado pelo PMDB, as denúncias atingem a Agência Nacional do Petróleo (ANP), dirigida pelo ex-deputado Haroldo Lima (PCdoB). Gravações mostram assessores ligados a ANP cobrando propinas de clientes que chegam à monta de R$ 40 mil reais, para "liberação" de processos e pedidos. Segundo a denúncia, este dinheiro seria desviado para o PCdoB.

No Ministério do Desenvolvimento Agrário, as denúncias apontam para venda de lotes que deveriam ser destinados a famílias beneficiadas por programas de Reforma Agrária. Outra denúncia aponta para o desmatamento realizado por madeireiras em áreas destinadas a Reforma Agrária, no Norte do país. Estas denúncias podem atingir ainda o Ministério do Meio Ambiente.

Sigilo para uma história que merece ser apagada

            Lula se foi, mas deixa extenso legado. Um deles refere-se a projeto enviado à Câmara dos Deputados propondo sigilo periodicamente renovado aos documentos oficiais, denominado Lei de Acesso a Informações Públicas.

Foi aprovado na casa do povo, com o segredo limitado até 50 anos, e atualmente está estacionado no Senado Federal, nas mãos de Fernando Collor, relator inclinado a assegurar sigilo periodicamente renovado sem limitação temporal, vale dizer, sigilo eterno a certos papéis oficiais. Essa também é a posição defendida pelo presidente da câmara alta, José Sarney.

Sintomático, pois. Ambos não querem revelar documentos secretos de seus respectivos mandatos no mais alto cargo do Poder Executivo.

E Dilma Rousseff acena pela manutenção do sigilo eterno, alinhavando-se aos setores mais espúrios da política nacional, a exemplo dos dois rapazes citados no parágrafo anterior.

Atualmente, o que vigora é o segredo eterno de certos documentos oficiais, lei sancionada por Fernando Henrique Cardoso em seu ultimo dia de mandato, assinando documento que depois confessou não saber o conteúdo.

Pois dizem que a divulgação pelo Palácio do Planalto de certos documentos oficiais escondidos desde priscas eras pode ser periclitante para a segurança nacional e para as relações diplomáticas com os países fronteiriços.

            Não creio. A segurança nacional estaria protegida pelo próprio texto da lei discutida no Congresso Nacional, que garante a inviolabilidade do sigilo tecnológico tão sensível à soberania tupiniquim, como já admitiu várias vezes o Ministro Nelson Jobim[1]. Quanto às relações diplomáticas, estas não restariam abaladas por papéis, uma vez que historicamente solidificadas e respeitadas.

            Como bem lembrou Frei Beto em artigo publicado no jornal Brasil de Fato[2], talvez o sigilo imposto sirva para cobrir a vergonhosa atuação de Duque de Caxias na Guerra do Paraguai, mas não para proteger a soberania nacional – os que defendem o sigilo eterno possuem receio da divulgação de documentos que versam sobre a constituição das fronteiras com o Paraguai, assim como a anexação pelo Brasil do Estado do Acre.
            Relações internacionais se fazem com políticas atuais de boa vizinhança, e não com a história expressa em papéis. Demais, temer pela segurança nacional na divulgação de fatos históricos expressos em documentos é menosprezar por completo aquilo que chamam de Ministério da Defesa.

            Não obstante, há ainda no Congresso Nacional projeto de lei[3] que cria a chamada Comissão da Verdade, cujo pretenso objetivo é examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos ocorridas em nossa história recente, mormente na ditadura militar.

            O nódulo a ser desatado: como aprovar a Comissão da Verdade e vetar eternamente o acesso a documentos oficiais? Contradições que podem exsurgir.

            O Brasil possui o direito de conhecer melhor a sua história recente, afinal, um país sem memória corre sempre o risco de repetir, no futuro, os erros do passado, vale dizer, tornar a reproduzir o que houve de pior em sua própria história.

Ainda, as famílias dos mortos, desaparecidos e torturados na ditadura militar também possuem o direito de saber o que ocorreu com seus entes queridos.

É o mínimo que se espera de uma república federativa que se reivindica democrática de direito e alça à condição de dogma constitucional o princípio da publicidade dos atos da administração pública de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.


[1]http://br.noticias.yahoo.com/jobim-fim-sigilo-documentos-criar%C3%A1-pol%C3%AAmica-213400926.html
[2] Edição nº 434
[3] Projeto de Lei nº 7.376/2010

Sobre loteamentos fechados


            Em suma, a Câmara Municipal de Ribeirão Preto/SP aprovou projeto de lei de autoria da Prefeitura local que legaliza loteamentos fechados, vale dizer, bairros fechados.

Não vou discorrer sobre a possível inconstitucionalidade desta lei municipal, já que isso em breve será ofício do Poder Judiciário ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade que o Ministério Público local já demonstrou intenção de promover.

Vou me ater às críticas políticas.

A começar pela esquisita oportunidade em que referido projeto de lei fora apresentado à casa legislativa: de surpresa e sem alarde, pelo vice-prefeito que estava em exercício, em uma conjuntura que sugeriu oportunismo. Mais estranho que isso só a rapidez em que fora votado e aprovado por nossos vereadores: em menos de uma semana da apresentação, sem qualquer discussão mais aprofundada com o COMUR (Conselho Municipal de Urbanismo) e até mesmo com a sociedade em geral.

Do jeito que veio do executivo, foi aprovado pelo legislativo – numa rapidez aeroviária.

Referida lei municipal, como adiantado, autorizou os chamados loteamentos fechados, ou bairros fechados, numa descarada privatização dos espaços públicos.

Pois bem, loteamentos são locais em que o solo foi parcelado de acordo com a Lei Federal nº 6.766/79, ou seja, locais que possuem ruas públicas e áreas verdes igualmente públicas.

Aliás, assim é redigido o artigo 22 da Lei Federal em apreço, que bem demonstra a existência de espaços públicos:

Art. 22 - Desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo.

A lei municipal aqui atacada, como se percebe, tornou particular certos espaços públicos da cidade, porquanto autorizou seu fechamento pelos moradores do entorno ou pelas respectivas associações de bairro.

Ainda que o texto frio da lei em apreço garanta a passagem de qualquer veículo ou pedestre mediante identificação, isso não significa a garantia do direito constitucional de ir e vir, porque além de ser inócuo em termos práticos, o ato de reconhecimento não passa, no fundo, de abuso intolerável contra o direito de privacidade e locomoção.

Não podemos enxergar como natural a identificação em locais privados sob a escusa de proteção para os que ali residem ou trabalham. A colheita de dados de quem quer transitar pelos loteamentos fechados (leia-se: pelas ruas da cidade) alimenta arquivos cuja destinação e segurança não se sabe, suscitando as seguintes dúvidas:

1. Quanto tempo esse arquivo vai ficar em poder dos administradores do loteamento fechado?

2. Esse arquivo é mantido, guardado e operado de forma segura?

3. O porteiro que o exige, sem qualquer demérito ao seu status profissional, social ou cultural, é a pessoa mais idônea para lidar com tal material?

4. Há possibilidade de transferência desse arquivo para mãos de estelionatários ou outros escroques?

5. É possível, a partir desses dados, fazerem-se montagens fraudulentas de novos documentos?

São as perguntas que não querem calar.

Esse acervo documental pode, perfeitamente, ser objeto de furto, roubo, de comércio ilegal ou invasão por hackers, com gravíssimas conseqüências para seus titulares.

Assim, sem qualquer análise jurídica mais aprofundada, pode-se concluir pela afronta ao direito de privacidade e locomoção, ao ter dados pessoais registrados pelos administradores dos espaços públicos, à vista da extrema vulnerabilidade a que fica submetido o identificado.

Como bem ensinou o professor Gilberto Abreu, a polis foi pensada no século VIII a.C. pelos gregos como local de comunhão e socialização entre os homens, mas atualmente segrega e reproduz a diferença das classes sociais.

A lei em comento é resultado da moderna e obsessiva preocupação com segurança, reflexo de um crescente e generalizado sentimento de insegurança instalado no seio da sociedade civil, mormente promovido pela espetaculosa mídia e pelo mercado da segurança privada e de administração de condomínios, que descobriram em novos loteamentos um nicho para expansão de seus negócios, ao transformá-los em verdadeiros condomínios.

            Cria verdadeiros feudos urbanos, cercados com muro e com serviços públicos suprimidos, antes fornecidos pela administração pública municipal e agora pelos administradores do condomínio biônico, criando uma grotesca ausência estatal, como já acontece há tempos em certos cantos desta terra de Palocci.

Transporte clandestino, segurança privada, limpeza particular, exemplo de serviços escamoteados da administração pública, além do estado de sítio vivido por alguns moradores perseguidos pelos administradores, em verdadeira discriminação social para com aqueles que não conseguem arcar com os custos destes serviços usurpados da administração pública e doravante prestados pelos administradores do loteamento fechado.

Enfim, eis a nova moda das grandes metrópoles: criar bunkers urbanos em espaços públicos.

Sobre alimentos e multinacionais

Graças à eleição do brasileiro José Graziano para o comando da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), tive a oportunidade de descobrir que este organismo, nos anos 60, concluiu que todos os países do hemisfério sul (subdesenvolvidos) possuíam superávit de mais de sete bilhões de dólares em produção interna de alimentos nesta época.

Em outras palavras, a receita da produção doméstica de alimentos na década de 60 excedia as despesas da cadeia produtiva, de modo que o preço e a oferta de alimentos permaneciam demasiadamente acessíveis e abundantes à população.

Dado bastante curioso, sobretudo porque os alimentos, atualmente, são os que mais fomentam a inflação nos países subdesenvolvidos, pela permanente e gradativa alta nos preços. E assim o é no Brasil.

Mas como explicar a radical mudança neste panorama? Aqui vai mais uma teoria conspiratória.

Nos idos de 1960, época da conclusão da FAO ora em destaque, não existia nenhuma empresa ou multinacional que possuísse sequer 2% do mercado atuante. No setor alimentício, desde a distribuição de sementes até aos supermercados varejistas, não havia monopólio, cartel ou qualquer tipo de reserva de mercado.

Atualmente, pelo contrário, verifica-se maciça concentração corporativa em toda e qualquer a cadeia produtiva – e no setor alimentício, ora em comento, desde o setor de distribuição de sementes, onde hodiernamente quatro grandes corporações dominam cerca de 80% do mercado mundial (Cargill, ADM, Bunge e Louis Dreyfus), até a rede de supermercados varejistas (no Brasil, vide as recentíssimas notícias sobre o superincremento do Pão de Açúcar e Carrefour).

Pois bem, uma conclusão possível é que essa concentração corporativa, por controlar toda a cadeia produtiva do setor alimentício, em escala mundial inclusive, possui o poder de escolher os compradores da produção, sendo obviamente aqueles países que mais paguem no momento da transação. Uma equação bastante lógica: vende-se àqueles que mais paguem.

Desse modo, os preços dos alimentos tornam-se imprevisíveis e instáveis ante o excesso de demanda internacional. Afinal, alimento é produto de consumo inadiável, e faz com que países desenvolvidos cometam extravagâncias para abastecer (ou não desabastecer) seus mercados internos, em uma irracional concorrência, de modo a fomentar uma crise de abastecimento.

Assim, como o controle da produção agrícola está, a nível mundial, sob a égide de corporações multinacionais que só se preocupam com o lucro e nada mais, a comercialização da produção de alimentos se dá àqueles que mais paguem no momento da transação, e não àqueles que realmente necessitem, de modo que o preço dos alimentos torna-se permanente e gradativamente próspero, puxando a inflação nos países subdesenvolvidos.

Eis o estratagema engendrado pelas transnacionais para abduzir o superávit de outrora dos países do hemisfério sul. E, em assim sendo, a concentração corporativa afigura-se flagrantemente nefasta, embora em sintonia com o sistema econômico atual e mundial, já que a longo prazo promove gradativa alta nos preços dos alimentos, retirando dos países, mormente os subdesenvolvidos, a soberania alimentar.

E não há política pública que possa controlar o preço dos alimentos quando a produção está nas mãos daqueles que só se preocupam com o lucro. Então, obviamente que não irão comercializar com quem necessite, mas sim com quem pague mais.

A concentração corporativa atual, além de alavancar a inflação, atrapalha a auto-suficiência alimentar dos países em desenvolvimento, e, ao lado de outros problemas estruturais (aumento do preço dos combustíveis fósseis; aumento do consumo de alimentos nos países em desenvolvimento; eventos climáticos adversos que causam prejuízos às colheitas; desvios de cereais para a produção de biodiesel; deterioração do solo por exploração intensiva) fomenta uma premente crise alimentar mundial, quiçá mais grave do que aquela de 2007/2008.

Tudo isso sem falar na especulação financeira nos mercados agrícolas  através das commodities, assunto que merece reflexão em artigo separado tamanha sua gravidade e importância.

Reclamar é fácil

            O mais curioso nos congestionamentos urbanos é o fato de que a maioria esmagadora dos carros ali parados estão ocupados por apenas uma pessoa – o próprio motorista, óbvio. Pelo menos assim o é na terra de Palocci, Ribeirão Preto/SP.

            Mais interessante que isso são as expressões e trejeitos dos impacientes solitários, não raras vezes culpando a administração pública pela ausência de políticas para o transporte.

            Os engenheiros de tráfego mais alarmistas dizem que um dia a cidade para por completo. Mas fato é que até o momento não parou, mas somente elevou a níveis estratosféricos o stress dos motoristas, mormente na hora do rush.

            Eu diria que a piora na qualidade de vida que o entupimento das vias públicas causa é o preço que se paga pelo conforto (?) de se utilizar o veículo. Se é que podemos chamar de conforto perder uma ou até duas horas diárias somente no trajeto. Isso sem contar a problemática que é estacionar em vias públicas. E a superinflação dos estacionamentos privados (um exemplo atual e bem didático da teoria de Adam Smith).

Ninguém abre mão de ter o seu próprio veículo – carona não existe, transporte público além de deselegante é sofrível e andar a pé é algo que não tem préstimo, apesar de Wilson Simoninha dizer o contrário[1].

Aliás, bastante anacrônico esse hábito de não se andar a pé. Mas trata-se da filosofia moderna: vivemos a paranóia de que carro é sinônimo e instrumento de poder.

É a conseqüência da perversa opção que o capitalismo periférico tupiniquim abraçou, privilegiando os carros – eternos fetiches da sociedade de consumo – em detrimento do transporte público e de meios mais saudáveis. É a polêmica relação que o Brasil criou com o automóvel.

E o pior é que os diminutos espaços para se andar a pé são constantemente usurpados por veículos estacionados irregularmente. Claro, falta espaço nas vias públicas, tomadas por veículos cada vez mais possantes.

            Fato é que os motoristas nada fazem para diminuir o trânsito senão culpar o poder público pelos engarrafamentos. Reclamar é fácil, difícil é fazer mea culpa pelo caos no trânsito.


[1] Em sua música É Bom Andar a Pé.
Trata-se a foto da Avenida Nove de Julho, Ribeirão Preto/SP.

Sobre Cesare

Não sou especialista em direito constitucional e tampouco em direito internacional público, mas pelo que tenho entendido fora acertada a decisão do Supremo Tribunal Federal em libertar o italiano mais famoso depois de Luciano Pavarotti.

Pelo que pouco entendi o STF esgotou sua competência para decidir sobre a extradição de Battisti quando em 18 de novembro de 2009 sacramentou ser do chefe máximo do Poder Executivo, o Presidente da República, a faculdade – portanto ato discricionário – de atender ou negar o pedido realizado pelo governo italiano.

Assim sendo, uma vez já se decidido quem daria a palavra final, não restavam motivos para a modificação deste desfecho neste ultimo julgamento ocorrido em 08/06/11, uma vez ausente qualquer nulidade no processo extraditório.

Desta feita, a partir de 31 de dezembro de 2010, quando o então Presidente Lula tornou pública sua decisão de negar atendimento ao pedido de extradição, a prisão do ragazzo, segundo Dalmo Dallari, tornou-se ilegal, assim como a continuação da competência do STF para analisar referida matéria.

Ainda, há entendimento de que a qualidade de refugiado político concedido a Battisti pelo Ministério da Justiça foi motivo bastante para ter arquivado o processo de extradição por perda de objeto, de modo que sua prisão tornou-se ilegal a partir da decisão do então ministro Tarso Genro, em 13 de janeiro de 2009, que entendeu haver fundados os temores de perseguição do interessado em seu Estado de origem por motivos de opiniões políticas, com base no artigo 1º, inciso I, da Lei 9.474/97.

Em minha opinião modesta, a emblemática aqui é simples: acreditar que os crimes supostamente cometidos por Cesare não foram políticos é subestimar a inteligência do homem médio.

Os livros de história e o próprio governo da Itália informam que foi ele militante da esquerda radical desde 1968, época em que se iniciava conflito acirrado entre o governo fascista de extrema direita e a esquerda clandestina, que recorreu inclusive à luta armada (são os chamados anos de chumbo da história italiana).

Precisamente nesta conjuntura ocorreram os crimes imputados a Battisti. Assim, penso que sua participação nos eventos, se verdadeira (ele sempre negou), possuiu motivação política, porquanto engendrados por organização política clandestina em uma conjuntura de embate contra o governo. E a Constituição Federal veda a extradição de estrangeiro por crime político (artigo 5º, inciso LII), de modo que indevida sua extradição. Simples assim.

Nuances jurídicas à parte, fato é que Battisti, cuja cabeça podemos dizer que vale mais do que as marcas Armani, Dolce & Gabbana, Valentino, Versace, Luxottica e Prada juntas na terra da Divina Comédia, agora é um homem livre, para desespero de Franco Frattini e seus cupinchas órfãos de Mussolini.

Mas a novela global das oito ainda não terminou. Ao que tudo indica o palco agora será o Tribunal Internacional de Haia. Se é ele competente ou não para dirimir o entrevero não sei, deixo a questão para os especialistas, mas que novos capítulos virão, ainda que velados e sob forma de retaliação, tenho certeza que sim.

Parafraseando a citada obra Dante Alighieri, Battisti já passou pelo inferno carcerário, falta atravessar o purgatório de Haia para, enfim, gozar no paraíso tupiniquim, comendo churrasco, bebendo cerveja, pulando carnaval e assistindo futebol (aliás, verá o Comercial de Ribeirão Preto ganhar o Paulistão de 2012, se permanecer morando na capital paulista).

E se Fellini estivesse vivo, certamente faria um belo filme.

Um pouco sobre Gramsci


Antonio Gramsci, nascido em Ales, aos 22 dias do mês de janeiro de 1891 e morto aos 27 dias de abril de 1937 na capital italiana, nos deixou um considerável legado doutrinário, notadamente em seus 32 cadernos escritos nos oito anos que passou no cárcere.

Não pretendo aqui desmistificar suas teorias (até porque, confesso, não li na totalidade referidos cadernos), mas sim apontar duas repercussões que seus pensamentos lançaram para a posteridade, no meio acadêmico marxista e no seio dos partidos políticos de esquerda.

Pois bem, nos meios acadêmicos, Gramsci, a partir de uma leitura original de Marx e Engels, foi o responsável pelo surgimento de uma sociologia crítica que concluiu não ter a dominação de classe necessariamente uma origem na infra-estrutura econômica, como havia previsto os autores de O Capital.  Para ele, a superestrutura ideológica era o principal fator de constrangimento do proletariado. E a partir dessa premissa concebeu o conceito de ‘hegemonia’.

Consiste a hegemonia, pois, na capacidade da classe dominante de manter o poder utilizando basicamente um falso consenso nas instituições da sociedade civil (e somente em ultima instância através da coerção).

Os aparelhos responsáveis pela expansão da hegemonia (escolas, igrejas, sindicatos, imprensa, etc.) disseminam justamente o sistema de idéias e políticas defendidas pelo ‘bloco histórico dominante’, de modo que cooperam para a manutenção de uma consciência social homogênea, que mantém o status quo e cria uma falsa percepção de liberdade e democracia. Figuram como verdadeiros aparelhos ideológicos.

Ao contrário de Marx e Engels, que entendiam a sociedade civil como mero resultado da infra-estrutura, da base econômica, Gramsci a entendeu como um espaço de mediação entre a infra-estrutura e o aparelho burocrático do Estado.

Nas palavras de Joseph Fontana:

Uma das contribuições mais interessantes de Gramsci é a sua reflexão sobre os mecanismos pelos quais uma classe pode exercer a dominação sobre as outras, estabelecendo a sua hegemonia não somente pela coerção, como também mediante o consenso, transformando a sua ideologia de grupo num conjunto de verdades que se supõem válidas para todos e que as classes subalternas aceitaram[1].

Assim, para Gramsci seria a sociedade civil parte da superestrutura que conjuntamente com a infraestrutura econômica comporiam aquilo que chamou de bloco histórico, e não uma conseqüência umbilicalmente ligada à infra-estrutura econômica.

Em linhas gerais, essa é a principal cisão acadêmica que Gramsci promoveu na até então intocada obra marxista, mas não a única e nem a mais polêmica.

Outra repercussão gramsciana se deu no seio dos partidos políticos de esquerda que adotaram o centralismo democrático como forma de organização.

Para Gramsci, essa funcionalidade serviu a um contexto histórico específico, onde o Estado se fazia onipresente (ditatorial) e a sociedade civil primitiva e gelatinosa, conjuntura esta a que chamou de ‘guerra de movimento’, como na União Soviética de Lênin, donde um destacamento de vanguarda disciplinado estabelecendo princípios, procedimentos e disciplinas afigurava-se apropriado para se combater um aparelho repressivo.

Em uma conjuntura onde se pode reconhecer na ausência do Estado uma robusta estrutura da sociedade civil, como na maioria dos Estados ocidentais, referida vanguarda poderia traduzir-se em uma burocracia ante a intensa ‘guerra de posições’ nos ‘aparelhos privados de hegemonia’ da sociedade civil.

Aos partidos conspiracionistas, se quisessem figurar como agentes da vontade coletiva transformadora nessa espécie de conjuntura, melhor seria desenvolver forma de organização não pela subordinação imposta administrativamente pela maioria à minoria, mas pelo consenso tecido em torno das questões capitais para o desenvolvimento da luta política, de modo a permitir disputar a hegemonia na sociedade civil.

Assim, em tais condições (guerra de posições), o centralismo democrático restaria anacrônico, já que pensado (por Lênin?) para a guerra de movimento na qual passava a União Soviética – sendo eficaz para o que se propunha nesta conjuntura.

Historicamente, mormente em Estados onde há um vão entre a infra-estrutura e o aparelho administrativo do Poder Público, ocupado por instituições da sociedade civil, o centralismo democrático tendeu para o centralismo burocrático.

Essa tendência tornou-se mais nítida na concepção stalinista de partido. Houve o deslocamento do centro da discussão política das organizações de base para as direções. Conseqüentemente, a escolha das direções passou a ser operada por cooptação. Nesse formato, é a direção que legitima as bases e estabelece o controle sobre elas, invertendo a dinâmica democrática e forjando a vontade da organização de cima para baixo.

Note-se que não é o caso de se negar a via revolucionária, como vão acusar alguns binários (como diria o camarada Tejo), mas sim de facilitá-la.

Em breve resenha, dois legados gramscianos.


[1] FONTANA, Joseph. História: análise do passado e projeto social. Bauru-SP: EDUSC, 1998, p.238.

Repressão Jurídica

A Constituição Federal de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã – tamanha as garantias fundamentais ali solidificadas – paradoxalmente não consegue impedir a ‘repressão legal’ ou o ‘terrorismo de Estado’ a uma das mais basilares faculdades cívicas da sociedade. A criminalização dos movimentos sociais está ai e não me deixa mentir.

A luta dos ativistas do campo e da cidade, apesar das garantias da Carta Magna de 1988, não está imune a certos ranços da ditadura militar que insistem em permear o aparato repressivo do Estado, embora com roupagem mais polida.

Lúcia Rodrigues, em artigo publicado na revista Caros Amigos (Brasil: as novas táticas da repressão política), assim sintetizou a problemática aqui exposta:

Se durante os anos de chumbo, o Estado prendia, torturava e assassinava, pura e simplesmente, sem se preocupar com as conseqüências de seus atos, na democracia formal lança mão de recursos mais refinados para alcançar seus objetivos. Agora, lideranças populares do campo e da cidade são obrigadas a conviver também com o medo da punição legal.

Apesar da tortura e do assassinato ainda existirem – embora em reduzido número e às escondidas – a repressão institucional inova em seu modus operandi, de modo que a perseguição àqueles que ousam se levantar contra as injustiças sociais ainda subsiste, desde os anos de chumbo.

O premente receio da punição legal é o mais novo obstáculo a ser superado pelos movimentos populares, que sempre cumpriram um papel civilizatório em toda e qualquer sociedade. Afinal, são os movimentos populares que impulsionam e provocam rupturas na hegemonia do bloco histórico dominante.

Essas novas táticas de repressão se dão principalmente através das forças públicas de segurança, a linha de frente do Estado, responsável pela repressão direta, que não raras vezes forjam situações capazes de legitimar seus próprios atos e por integrantes do Poder Judiciário, que se utilizam da indumentária a que estão investidos para agirem como verdadeiros aparelhos ideológicos do Estado.

A fundamentação jurídica utilizada por esses agentes ideológicos, no manejo de demandas para impedir o levante popular e para intimidar os ativistas, por vezes resvala nas fronteiras do sofisma, com falsos axiomas e malabarismos interpretativos, e na prática tão somente mantém viva a célebre frase de Washington Luís, o último presidente da República Velha, que certa vez disse que ‘a questão social é uma questão de polícia’. E se for a militar paulista, à base de balas de borracha, cassetetes, socos, chutes, spray de pimenta e bombas de efeito moral.

Soma-se a isso a abordagem da grande maioria dos veículos de comunicação sobre o tema, alinhavados com os interesses da classe econômica hegemônica, que insistem em matérias tendenciosas, a fim de assustar principalmente setores da classe média, mantendo-os receosa e imobilizadamente em casa, quiçá para dar-lhes audiência.

Neste panorama, temos que os movimentos sociais possuem a pecha de violentos, irracionais, ilegais, adjetivos que ganham consenso na sociedade com o passar do tempo, exterminando, naturalmente, qualquer espécie de levante. Afinal, uma mentira repetida várias vezes torna-se verdade, como já disse Joseph Goebbels.

Esse é o verniz utilizado para revestir e encobrir a verdadeira intenção do bloco histórico dominante: a criminalização dos movimentos sociais.

A proibição da marcha da maconha no Estado de São Paulo é só uma pequena nuance dessas novas táticas de repressão política, a ponta do iceberg, e bem reflete o conservadorismo do sistema judiciário tupiniquim, melhor dizendo, do Poder Judiciário paulista.  Veja você, só tivemos situações como essa, de proibir marchas, na ditadura. E estamos presenciando esta mesma atitude em plena democracia republicana.

Nas palavras de Marco Magri (A proibição da Marcha da Maconha e liberdade de expressão):

Sob as mais infundadas acusações – “defendem o uso indiscriminado de drogas”; “querem acabar com a família”; “são traficantes” – alguns Estados do País interpretam a mesma lei que permite aos seguidores de Bolsonaro se manifestarem, com proteção policial, de maneira invertida para impedir pessoas de expressarem sua opinião sobre a atual lei de drogas proibicionista.

Particularmente, penso que a política de repressão às drogas é a responsável pela violência do Estado e do crime, mas isso é tema para outro artigo.

Fato é que essa repressão protagonizada pelas instituições do Estado, além de refletir um atraso e a incapacidade de superar erros e avançar para outro tipo de sociedade que prestigie os debates e as diferenças, demonstra que o aparato jurídico não possui a menor vocação para a democracia e está parado em algum lugar entre 1964 e 1985.

Ainda segundo Lúcia Rodrigues: além de utilizar a polícia para perseguir os lutadores sociais, agora, além da violência direta, os poderes do Estado movem processos jurídicos para intimidar os ativistas. Acrescento: quem não conhece a história de Gegê ou da insistente perseguição do Ministério Público do Rio Grande do Sul para com o MST local? Pois resumem muito bem esse panorama.

Pois bem, a aversão a qualquer forma de mudança é vista como uma ameaça real e movimenta a força motriz dessa engrenagem que envolve os poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, a mídia e as forças policiais a serviço do poder econômico.

Enquanto os países realmente democráticos discutem alternativas para a (fracassada) política repressiva contra as drogas, nós, brasileiros, sequer podemos discutir o tema. Não se depender do judiciário paulista, vide os acontecimentos da Avenida Paulista em 21 de maio de 2011.

Aliás, bastante intrigante os critérios utilizados pelo Estado: para os manifestantes fascistas e homofóbicos que se reuniram recentemente debaixo do vão do MASP, sob proteção policial, para apoiar Bolsonaro, a liberdade de expressão e reunião prevista na Constituição é regra a ser observada, e para a Marcha da Maconha, movimento que propõe exatamente discutir alternativas que retire da ilegalidade uma conduta, não.

Os movimentos sociais não são criminosos, mas sim criminalizados, e as mazelas históricas somente se superam com o enfrentamento político, algo que a engrenagem estatal tenta evitar.

A proibição de toda e qualquer marcha é apologia ao autoritarismo e ao totalitarismo. O jornalista Julio Delmanto de forma perspicaz esclarece que ‘a situação encaixa claramente com o que aponta Norberto Bobbio, ao mostrar como o “autoritarismo é uma manifestação degenerativa da autoridade”, é “uma imposição da obediência e prescinde em grande parte do consenso dos súditos, oprimindo sua liberdade”. E também infelizmente flerta com o que traz Hannah Arendt ao afirmar que o totalitarismo “não substitui um conjunto de leis por outro, não estabelece o seu próprio consensus iuris, não cria, através de uma revolução, uma nova forma de legalidade”.

E arremata com a pergunta que não quer calar: ‘Nossas ruas pertencem à Polícia e ao Judiciário ou ao povo?’

Com relação aos acontecimentos deste fim de semana, temos a infeliz decisão do desembargador Teodomiro Mendez, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que proibiu a realização da Marcha da Maconha porque entendeu ‘não se tratar de um debate de idéias, mas de uma manifestação de uso público coletivo de maconha’. Observou ainda ‘indícios de práticas delitivas a favorecerem a fomentação do tráfico de drogas, crime equiparado aos hediondos’.

Pois bem, Fernando de Barros e Silva, no editorial da Folha de São Paulo de hoje (‘Fumaça Democrática’, Folha de São Paulo, 23/05/2011) disse que apesar da repressão veemente da PM, nenhuma pessoa fora presa por fumar maconha no ato.

Onde está o uso público coletivo de maconha que fundamentou a decisão?

Censura desnuda, mas disfarçada com toga forense.

E a PM, ao invés de manter a ordem e a legalidade ao cumprir a determinação judicial, promoveu verdadeira desordem, distribuindo deselegâncias até para quem estava no lugar errado e na hora errada. E nem adiantou mudar o aspecto do ato para marcha pela liberdade de expressão, porque á tropa de choque não entende muito de democracia. Sangue derramado pela força de uma canetada.

A questão principal penso que nem é a proibição ou não da maconha. É a liberdade de se discutir sobre as políticas de drogas de forma aberta, sem mordaça. E sem criminalizar os movimentos sociais.