Sobre loteamentos fechados


            Em suma, a Câmara Municipal de Ribeirão Preto/SP aprovou projeto de lei de autoria da Prefeitura local que legaliza loteamentos fechados, vale dizer, bairros fechados.

Não vou discorrer sobre a possível inconstitucionalidade desta lei municipal, já que isso em breve será ofício do Poder Judiciário ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade que o Ministério Público local já demonstrou intenção de promover.

Vou me ater às críticas políticas.

A começar pela esquisita oportunidade em que referido projeto de lei fora apresentado à casa legislativa: de surpresa e sem alarde, pelo vice-prefeito que estava em exercício, em uma conjuntura que sugeriu oportunismo. Mais estranho que isso só a rapidez em que fora votado e aprovado por nossos vereadores: em menos de uma semana da apresentação, sem qualquer discussão mais aprofundada com o COMUR (Conselho Municipal de Urbanismo) e até mesmo com a sociedade em geral.

Do jeito que veio do executivo, foi aprovado pelo legislativo – numa rapidez aeroviária.

Referida lei municipal, como adiantado, autorizou os chamados loteamentos fechados, ou bairros fechados, numa descarada privatização dos espaços públicos.

Pois bem, loteamentos são locais em que o solo foi parcelado de acordo com a Lei Federal nº 6.766/79, ou seja, locais que possuem ruas públicas e áreas verdes igualmente públicas.

Aliás, assim é redigido o artigo 22 da Lei Federal em apreço, que bem demonstra a existência de espaços públicos:

Art. 22 - Desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo.

A lei municipal aqui atacada, como se percebe, tornou particular certos espaços públicos da cidade, porquanto autorizou seu fechamento pelos moradores do entorno ou pelas respectivas associações de bairro.

Ainda que o texto frio da lei em apreço garanta a passagem de qualquer veículo ou pedestre mediante identificação, isso não significa a garantia do direito constitucional de ir e vir, porque além de ser inócuo em termos práticos, o ato de reconhecimento não passa, no fundo, de abuso intolerável contra o direito de privacidade e locomoção.

Não podemos enxergar como natural a identificação em locais privados sob a escusa de proteção para os que ali residem ou trabalham. A colheita de dados de quem quer transitar pelos loteamentos fechados (leia-se: pelas ruas da cidade) alimenta arquivos cuja destinação e segurança não se sabe, suscitando as seguintes dúvidas:

1. Quanto tempo esse arquivo vai ficar em poder dos administradores do loteamento fechado?

2. Esse arquivo é mantido, guardado e operado de forma segura?

3. O porteiro que o exige, sem qualquer demérito ao seu status profissional, social ou cultural, é a pessoa mais idônea para lidar com tal material?

4. Há possibilidade de transferência desse arquivo para mãos de estelionatários ou outros escroques?

5. É possível, a partir desses dados, fazerem-se montagens fraudulentas de novos documentos?

São as perguntas que não querem calar.

Esse acervo documental pode, perfeitamente, ser objeto de furto, roubo, de comércio ilegal ou invasão por hackers, com gravíssimas conseqüências para seus titulares.

Assim, sem qualquer análise jurídica mais aprofundada, pode-se concluir pela afronta ao direito de privacidade e locomoção, ao ter dados pessoais registrados pelos administradores dos espaços públicos, à vista da extrema vulnerabilidade a que fica submetido o identificado.

Como bem ensinou o professor Gilberto Abreu, a polis foi pensada no século VIII a.C. pelos gregos como local de comunhão e socialização entre os homens, mas atualmente segrega e reproduz a diferença das classes sociais.

A lei em comento é resultado da moderna e obsessiva preocupação com segurança, reflexo de um crescente e generalizado sentimento de insegurança instalado no seio da sociedade civil, mormente promovido pela espetaculosa mídia e pelo mercado da segurança privada e de administração de condomínios, que descobriram em novos loteamentos um nicho para expansão de seus negócios, ao transformá-los em verdadeiros condomínios.

            Cria verdadeiros feudos urbanos, cercados com muro e com serviços públicos suprimidos, antes fornecidos pela administração pública municipal e agora pelos administradores do condomínio biônico, criando uma grotesca ausência estatal, como já acontece há tempos em certos cantos desta terra de Palocci.

Transporte clandestino, segurança privada, limpeza particular, exemplo de serviços escamoteados da administração pública, além do estado de sítio vivido por alguns moradores perseguidos pelos administradores, em verdadeira discriminação social para com aqueles que não conseguem arcar com os custos destes serviços usurpados da administração pública e doravante prestados pelos administradores do loteamento fechado.

Enfim, eis a nova moda das grandes metrópoles: criar bunkers urbanos em espaços públicos.

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