A Constituição Federal de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã – tamanha as garantias fundamentais ali solidificadas – paradoxalmente não consegue impedir a ‘repressão legal’ ou o ‘terrorismo de Estado’ a uma das mais basilares faculdades cívicas da sociedade. A criminalização dos movimentos sociais está ai e não me deixa mentir.
A luta dos ativistas do campo e da cidade, apesar das garantias da Carta Magna de 1988, não está imune a certos ranços da ditadura militar que insistem em permear o aparato repressivo do Estado, embora com roupagem mais polida.
Lúcia Rodrigues, em artigo publicado na revista Caros Amigos (Brasil: as novas táticas da repressão política), assim sintetizou a problemática aqui exposta:
Se durante os anos de chumbo, o Estado prendia, torturava e assassinava, pura e simplesmente, sem se preocupar com as conseqüências de seus atos, na democracia formal lança mão de recursos mais refinados para alcançar seus objetivos. Agora, lideranças populares do campo e da cidade são obrigadas a conviver também com o medo da punição legal.
Apesar da tortura e do assassinato ainda existirem – embora em reduzido número e às escondidas – a repressão institucional inova em seu modus operandi, de modo que a perseguição àqueles que ousam se levantar contra as injustiças sociais ainda subsiste, desde os anos de chumbo.
O premente receio da punição legal é o mais novo obstáculo a ser superado pelos movimentos populares, que sempre cumpriram um papel civilizatório em toda e qualquer sociedade. Afinal, são os movimentos populares que impulsionam e provocam rupturas na hegemonia do bloco histórico dominante.
Essas novas táticas de repressão se dão principalmente através das forças públicas de segurança, a linha de frente do Estado, responsável pela repressão direta, que não raras vezes forjam situações capazes de legitimar seus próprios atos e por integrantes do Poder Judiciário, que se utilizam da indumentária a que estão investidos para agirem como verdadeiros aparelhos ideológicos do Estado.
A fundamentação jurídica utilizada por esses agentes ideológicos, no manejo de demandas para impedir o levante popular e para intimidar os ativistas, por vezes resvala nas fronteiras do sofisma, com falsos axiomas e malabarismos interpretativos, e na prática tão somente mantém viva a célebre frase de Washington Luís, o último presidente da República Velha, que certa vez disse que ‘a questão social é uma questão de polícia’. E se for a militar paulista, à base de balas de borracha, cassetetes, socos, chutes, spray de pimenta e bombas de efeito moral.
Soma-se a isso a abordagem da grande maioria dos veículos de comunicação sobre o tema, alinhavados com os interesses da classe econômica hegemônica, que insistem em matérias tendenciosas, a fim de assustar principalmente setores da classe média, mantendo-os receosa e imobilizadamente em casa, quiçá para dar-lhes audiência.
Neste panorama, temos que os movimentos sociais possuem a pecha de violentos, irracionais, ilegais, adjetivos que ganham consenso na sociedade com o passar do tempo, exterminando, naturalmente, qualquer espécie de levante. Afinal, uma mentira repetida várias vezes torna-se verdade, como já disse Joseph Goebbels.
Esse é o verniz utilizado para revestir e encobrir a verdadeira intenção do bloco histórico dominante: a criminalização dos movimentos sociais.
A proibição da marcha da maconha no Estado de São Paulo é só uma pequena nuance dessas novas táticas de repressão política, a ponta do iceberg, e bem reflete o conservadorismo do sistema judiciário tupiniquim, melhor dizendo, do Poder Judiciário paulista. Veja você, só tivemos situações como essa, de proibir marchas, na ditadura. E estamos presenciando esta mesma atitude em plena democracia republicana.
Nas palavras de Marco Magri (A proibição da Marcha da Maconha e liberdade de expressão):
Sob as mais infundadas acusações – “defendem o uso indiscriminado de drogas”; “querem acabar com a família”; “são traficantes” – alguns Estados do País interpretam a mesma lei que permite aos seguidores de Bolsonaro se manifestarem, com proteção policial, de maneira invertida para impedir pessoas de expressarem sua opinião sobre a atual lei de drogas proibicionista.
Particularmente, penso que a política de repressão às drogas é a responsável pela violência do Estado e do crime, mas isso é tema para outro artigo.
Fato é que essa repressão protagonizada pelas instituições do Estado, além de refletir um atraso e a incapacidade de superar erros e avançar para outro tipo de sociedade que prestigie os debates e as diferenças, demonstra que o aparato jurídico não possui a menor vocação para a democracia e está parado em algum lugar entre 1964 e 1985.
Ainda segundo Lúcia Rodrigues: além de utilizar a polícia para perseguir os lutadores sociais, agora, além da violência direta, os poderes do Estado movem processos jurídicos para intimidar os ativistas. Acrescento: quem não conhece a história de Gegê ou da insistente perseguição do Ministério Público do Rio Grande do Sul para com o MST local? Pois resumem muito bem esse panorama.
Pois bem, a aversão a qualquer forma de mudança é vista como uma ameaça real e movimenta a força motriz dessa engrenagem que envolve os poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, a mídia e as forças policiais a serviço do poder econômico.
Enquanto os países realmente democráticos discutem alternativas para a (fracassada) política repressiva contra as drogas, nós, brasileiros, sequer podemos discutir o tema. Não se depender do judiciário paulista, vide os acontecimentos da Avenida Paulista em 21 de maio de 2011.
Aliás, bastante intrigante os critérios utilizados pelo Estado: para os manifestantes fascistas e homofóbicos que se reuniram recentemente debaixo do vão do MASP, sob proteção policial, para apoiar Bolsonaro, a liberdade de expressão e reunião prevista na Constituição é regra a ser observada, e para a Marcha da Maconha, movimento que propõe exatamente discutir alternativas que retire da ilegalidade uma conduta, não.
Os movimentos sociais não são criminosos, mas sim criminalizados, e as mazelas históricas somente se superam com o enfrentamento político, algo que a engrenagem estatal tenta evitar.
A proibição de toda e qualquer marcha é apologia ao autoritarismo e ao totalitarismo. O jornalista Julio Delmanto de forma perspicaz esclarece que ‘a situação encaixa claramente com o que aponta Norberto Bobbio, ao mostrar como o “autoritarismo é uma manifestação degenerativa da autoridade”, é “uma imposição da obediência e prescinde em grande parte do consenso dos súditos, oprimindo sua liberdade”. E também infelizmente flerta com o que traz Hannah Arendt ao afirmar que o totalitarismo “não substitui um conjunto de leis por outro, não estabelece o seu próprio consensus iuris, não cria, através de uma revolução, uma nova forma de legalidade”.
E arremata com a pergunta que não quer calar: ‘Nossas ruas pertencem à Polícia e ao Judiciário ou ao povo?’
Com relação aos acontecimentos deste fim de semana, temos a infeliz decisão do desembargador Teodomiro Mendez, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que proibiu a realização da Marcha da Maconha porque entendeu ‘não se tratar de um debate de idéias, mas de uma manifestação de uso público coletivo de maconha’. Observou ainda ‘indícios de práticas delitivas a favorecerem a fomentação do tráfico de drogas, crime equiparado aos hediondos’.
Pois bem, Fernando de Barros e Silva, no editorial da Folha de São Paulo de hoje (‘Fumaça Democrática’, Folha de São Paulo, 23/05/2011) disse que apesar da repressão veemente da PM, nenhuma pessoa fora presa por fumar maconha no ato.
Onde está o uso público coletivo de maconha que fundamentou a decisão?
Censura desnuda, mas disfarçada com toga forense.
E a PM, ao invés de manter a ordem e a legalidade ao cumprir a determinação judicial, promoveu verdadeira desordem, distribuindo deselegâncias até para quem estava no lugar errado e na hora errada. E nem adiantou mudar o aspecto do ato para marcha pela liberdade de expressão, porque á tropa de choque não entende muito de democracia. Sangue derramado pela força de uma canetada.
A questão principal penso que nem é a proibição ou não da maconha. É a liberdade de se discutir sobre as políticas de drogas de forma aberta, sem mordaça. E sem criminalizar os movimentos sociais.
Juíza indefere pedido de suspensão
ResponderExcluirA juíza de direito Maria Paula Kern, titular da 5ª Vara Cível da Comarca da Capital, indeferiu o pedido de concessão de liminar em medida cautelar ajuizada por Ismael dos Santos, Centro Terapêutico Vida- CTV e JC - Associação Brasileira de Combate às Drogas, em que pediam a suspensão da Marcha da Maconha Brasil, marcada para ser realizada na Capital.
Segundo a juíza, os autores partem da premissa de que, com a realização do evento, ocorrerá ilícito penal, razão pela qual seria cabível o manejo de ação cautelar cível para obstar a provável prática de um crime. De acordo com a magistrada, há impossibilidade jurídica do pedido no presente caso. "Ora, a prática de crime deve ser obstada e punida na esfera penal, ofendendo o bom senso que, usando o mesmo raciocínio da inicial, se admita uma cautelar cível, por exemplo, para proibir furtos em uma determinada região", anotou, ao julgar extinto o processo.
Para reforçar sua decisão, transcreveu argumentação do magistrado paulista Marcelo Semer, que assinala: "Não há espaço nesse admirável mundo novo para uma democracia que interdite o debate, um Estado que decida apenas ouvindo suas elites, uma política que sirva para o enriquecimento de seus burocratas, e juízes que se estabeleçam como censores." (Autos n. 023.11.026976-7)
O Estado, esse autoritário. O burguês, mais ainda. E dá-lhe teorias da justiça, Rawls etc.
ResponderExcluirAh, a teoria...Estado DEMOCRÁTICO de Direito? Aham...