Na esteira do colega Tejo, autor do prodigioso blog Elogio da Dialética, pessoa que, aliás, me influenciou e incentivou na criação dos Ensaios Libertários, abaixo um causo jurídico.
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Entro na sala de audiência. Vazia. No recinto somente as judiadas plantas que tentavam ornamentar o ambiente e uma pilha monstruosa de papéis – que eufemisticamente chamamos de processos. Cheguei cinco minutos antes do horário previsto, como um cavalheiro inglês. Aguardo os demais atores ensaiando minha fala. Dezoito minutos depois (cravados), o circo estava armado, digo, a audiência estava instalada.
Era a primeira audiência de vinte e cinco – pelo menos isso que constava na pauta. Estava como advogado plantonista do Juizado Especial Criminal. Minha nobre missão: defender os acusados que ali comparecessem sem advogado.
O magistrado, que não era o titular da vara, simpático e indolente com o espetáculo que acabava de montar, mal permaneceu em sua cadeira no alto do púlpito. Preferiu permanecer na sala ao lado, com casos e estagiárias mais interessantes.
- Doutores, minha presença é despicienda nesta ocasião.
E saiu. Na hora não entendi. Era como se fosse uma missa sem padre ou culto sem pastor.
As audiências, excetuando uma ou duas, eram todas relativas ao crime do artigo 29 da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), ou seja, porte de drogas para consumo próprio. A pena? Advertência sobre os efeitos das drogas para os primários e prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo para os reincidentes.
Na audiência ocorria a denominada transação penal, onde o acusado podia acatar as penas sem ser, todavia, considerado culpado. Exatamente o que o nome sugere. Você troca com o Ministério Público a submissão a uma das penas e ele deixa de te acusar, ‘desistindo’ do processo. Obviamente a descrição aqui não é técnica, mas é mais ou menos isso o que acontece naquela audiência.
Pois bem, o Promotor de Justiça foi o último a chegar, esbaforido, com ar ranzinza, terno do tipo italiano cor bege e calça sarja da mesma cor, camisa branca e uma gravata cuja estampa mais se parecia com um arranjo de flores. Postou-se na sala como verdadeiro maestro de orquestra sinfônica.
E, de fato, foi ele quem orquestrou os trabalhos, porque o magistrado logo sumiu para a sala ao lado.
O promotor de Justiça fez às vezes do juiz, aplicando ele próprio as penas de advertência. Claro que aquela situação não ficava descrita na ata. Mas estávamos em um teatro. Com sagazes atores, diga-se de passagem.
A cena era pitoresca, digna de Dante. Assim que o acusado entrava na sala, antes mesmo de se acomodar no banco dos réus, bradava em alto e bom tom o promotor de justiça:
- NÃO PAROU DE USAR ESSA MERDA AINDA? UTILIZAR ESSA DESGRAÇA SÓ LEVA A DOIS LUGARES: É CEMITÉRIO OU PRISÃO. TEVE SORTE DE NÃO TER LEVADO TRÁFICO NA CABEÇA.
O acusado, quando topetudo, resmungava alguns protestos. Na maioria das vezes abaixava a cabeça e sorria com ar zombeteiro. Sabia que aquele processo não lhe resultaria nada mais do que aquela bronca.
Visivelmente constrangido, percebia-se que aquela situação incomodava ao promotor, que combinava a sabedoria de um guru indiano com o atrevimento sadista de um soldado americano que luta no Iraque ou Afeganistão, na frente de seu oponente, indefeso.
Veja você, dar pito em marmanjo sobre as conseqüências do uso de drogas (maconha e cocaína, basicamente) soava como uma peça de teatro um tanto quanto alegórica naquele picadeiro judicial.
Mover a máquina da Polícia, do Judiciário, gastar-se com papel, recursos humanos, defensor dativo, água, luz e contribuir para o entupimento dos cartórios judiciais, para, ao final, aplicar uma bronca ao acusado, soava um tanto quanto jocoso, teatral.
Muitos acusados perdiam dia de serviço para comparecer na audiência e ouvir que o uso de drogas faz mal à saúde. Alguns saíam putos da vida, porque esperavam mais do Poder Judiciário.
- Se é para perder serviço, que seja por um motivo relevante, por uma pena digna de homem. Um trabalho comunitário, quem sabe. Não para ser humilhado por esse bosta – disse um deles, em meus ouvidos.
E o próprio promotor reconheceu que estava fazendo papel de bosta. Concordei.
Somente naquele dia foram vinte e cinco audiências, das quais vinte resultaram em admoestações verbais. Vinte repreensões das mais criativas possíveis. Os espectadores – estagiários e escreventes - vez ou outra deixavam escapar expressões de zombaria.
Entendi que o juiz na verdade se poupou de participar daquele vexame. De fato deveria ter coisa mais urgente para se fazer do que ficar dando bronca em rapagões.
O meu papel era o mais confortável possível. Orientar os acusados sobre os possíveis desfechos do processo que lhes recaiam. Obviamente todos aceitaram a bronca, digo, a transação penal.
Um rapaz chegou a confessar que iria comemorar o desfecho do processo fumando um baseado, no aconchego do lar. O promotor quase caiu da cadeira, tamanho faniquito que lhe acometeu ao ouvir aquele menosprezo.
Pois bem, havia um consenso naquela sala: de que o legislador foi covarde, quando da elaboração da nova lei de drogas, relativamente ao ‘crime’ de porte para uso próprio.
Não descriminalizou ou tampouco despenalizou por completo. Criou uma situação chamada pela doutrina de sui generis. Alguns até preferem chamar esse ‘crime’ de infração penal sui generis.
Avançou no sentido de não mais prever pena de prisão, entretanto, criou uma situação um tanto quanto jovial para os operadores do direito: para os acusados primários, instituiu a pena de advertência.
Uma situação que não alcança o fim almejado (reprimir o uso), pelo contrário, chega até a fomentar, que cria uma situação vexatória tanto para os operadores quanto para os acusados e que ajuda na morosidade do Poder Judiciário, prestando verdadeiro desserviço de política criminal.
O próprio promotor asseverou que preferia a completa descriminalização do porte para uso do que ter que passar por aquela situação constrangedora – perder seu tempo com miudezas, enquanto o crime organizado organiza-se ainda mais.
E ainda dizem que existe um princípio em direito penal chamado intervenção mínima, o qual informa que o poder punitivo do Estado deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes.
Aliás, é como o princípio da dignidade da pessoa humana. Ele até existe, mas é difícil ser reverenciado.
Breno, de que mundo você veio?
ResponderExcluirForte abraço.
Carlos Figueiredo
Minas Gerais, e você?
ResponderExcluirDa aprazível Ribeirão Preto, conhecida como a "Califórnia brasileira" e fica no mais belo Estado de nossa Federação, conhece?
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