Certa vez, de passagem pela capital do Estado, São Paulo – não me lembro exatamente o motivo da estadia – com a garganta seca, resolvi por bem entrar em um boteco qualquer para molhar as palavras. Afinal, fim de tarde, as cordas vocais precisavam ser lubrificadas. Com cevada e lúpulo.
Nunca gostei desta metrópole, seja pelo trânsito insuportável e estressante que lá existe, pelas pessoas frias e mal educadas que lá habitam, pela sensação de insegurança que lá paira no ar ou pelo alto custo de vida daquela cidade.
Pois bem, o boteco era um local tão pequeno, tão miserável e tão insignificante que se poderia passar por ali cem vezes sem notá-lo. Um local perfeito para tomar cerveja barata no balcão, ótimo para mim que nunca gostei de locais luxuosos.
No canto, quase que imperceptível, um senhor, de cabelos e barba grisalhos, porte médio, tez acinzentada, de sobretudo comprido e boné de pele, distante, aparentemente fechado, que assobiava despretensiosamente o hino da internacional socialista.
Obviamente não me contive e fui trocar algumas palavras com o sujeito. Claro, não é comum ouvirmos por ai este irreconhecível mantra, ainda mais num local rudimentar como aquele recinto. Ao contrário do que esperava, tratava-se de uma pessoa extremamente afável, não obstante sua aparência boquirrota e sua voz gutural.
Logo descobri que se tratava de um antigo militante de um partido político de extrema esquerda, condenado nos anos de chumbo por ofensas que iam do atentado à bala contra latifundiários ao crime de assoviar canções sediciosas – como aquela que me chamou a atenção.
Combinava ele a inteligência penetrante e o espírito prático de um excelente oficial de estado maior com o romantismo fundamental tantas vezes encontrado nos bons soldados de carreira. Expertises que colocou à disposição para a causa vermelha.
Mostrava-se revoltado com a sociedade que ajudou a formar quando participante ativo dos acontecimentos históricos. Pareceu-me violento por amor e intensamente nacionalista, transpassando sentimentos ambivalentes de amor e ódio ao sistema atual.
Falava sobre sua militância com uma paixão e uma eloqüência tanto mais poderosas quanto poucas vezes exibidas. Com a paciência inexaurível que adquirira na prisão dos porões da ditadura militar tupiniquim, dizia com a boca cheia que ajudou na tarefa de reorganização da sociedade, na tentativa de transformá-la num instrumento capaz de algum dia ser utilizado no apelo final às armas. Falou ainda, dentre outras coisas, sobre o abismo intransponível entre o povo e a administração pública da época ditatorial e da administração hodierna, acentuada pelo sistema representativo bicameral de nosso Congresso Nacional.
Fiquei ouvindo-o atentamente, sem fazer qualquer aparte. Ao final de sua fala, sentenciou:
- Já desempenhei meu papel, já posso ir para meu lugar – na lixeira da história.
A partir daí, por óbvio, nossa conversa se desenvolveu de maneira excitante e primorosa, como poucas vezes tive o prazer de o fazê-lo.
Uma pessoa improvável em um local igualmente improvável.
Depois deste episódio, a cidade da garoa me pareceu um tanto quanto interessante.
Uma das coisas que mais me fascinam nas metrópoles -seja São Paulo, Rio etc.- é a diversidade humana que existe.
ResponderExcluirA Internacional como "irreconhecível mantra", genial.
Sim, a única coisa que presta, em meu pensar.
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