O Nefasto Legado de Comte e o Tribunal Superior Eleitoral

Um dos temas centrais da obra filosófica de Augusto Comte (expressa nas obras: Curso de Filosofia Positiva e Discurso sobre o Espírito Positivo) é a necessidade de uma reorganização completa da sociedade, marcada pelo culto à ciência e pela sacralização do método científico . Com essas premissas, Comte desenvolveu o por ele mesmo batizado positivismo, produto do desenvolvimento sociológico do iluminismo francês e sua posterior revolução social.

A idéia chave do positivismo de Comte, em suma, é a denominada Lei dos Três Estados, uma forma de conceber a realidade (estado teológico, estado metafísico e estado positivo), que se contrapunha ao racionalismo abstrato do liberalismo, buscando explicar questões práticas da humanidade dando ênfase à experiência através de novos métodos para o exame científico dos problemas da sociedade.

A ordem, um dos lemas estruturantes do positivismo, se explica na medida em que esta corrente posta-se avessa à qualquer tipo de violência para alcançar a transformação social. As ações deveriam ser baseadas na persuasão e fundamentadas na moral positiva, que procura aperfeiçoar as ações práticas e intelectuais dos indivíduos, de forma a torná-los organismos mais bem preparados para a atuação em sociedade.

O Positivismo nega à ciência qualquer possibilidade de investigar a causa dos fenômenos naturais e sociais, considerando este tipo de pesquisa inútil e inacessível, voltando-se para a descoberta e o estudo das leis (relações constantes entre os fenômenos observáveis). Defende a idéia de que o conhecimento científico é a única forma de conhecimento verdadeiro. Assim sendo, desconsidera-se todas as outras formas do conhecimento humano que não possam ser comprovadas cientificamente. Tudo aquilo que não puder ser provado pela ciência é considerado como pertencente ao domínio teológico-metafísico caracterizado por crendices e vãs superstições.

No plano filosófico, tenho que o positivismo refletiu e reflete o entusiasmo burguês pelo progresso capitalista e pelo desenvolvimento técnico-industrial, servindo aos interesses hegemônicos desta classe eis que institucionaliza a ordem como base para o desenvolvimento, minando qualquer tipo de aspiração dialética no plano materialista histórico, podendo ser sintetizado na máxima comteana: o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim.

Inspirados no mote da filosofia comteana, Hans Kelsen, John Austin, Herbert Hart, Norberto Bobbio, dentre outros, desenvolveram a segurança jurídica necessária para a consecução dos anseios do positivismo de Augusto Comte, fundando, pois, o positivismo jurídico.

Em síntese, o positivismo jurídico considera Direito tudo aquilo que é posto pelo Estado (produto da ação e vontade humana), inexistindo necessariamente relação entre direito, moral e justiça, eis que as noções destas últimas são relativas, mutáveis no tempo e sem força política para se impor contra a vontade de quem cria as normas jurídicas.

Os positivistas consideram o ordenamento jurídico um sistema lógico fechado, onde as decisões jurídicas tidas como corretas podem ser inferidas, por meios lógicos, a partir de regras jurídicas predeterminadas, sem referência ou interferência de aspirações sociais, políticas ou morais.

Sabemos que o Estado é um instrumento de domínio de classe (e o sistema representativo faz parte do estratagema desta dominação), que nasceu da desigualdade para manter a desigualdade, e, assim sendo, temos que a doutrina jus positivista tornou-se protetora da hegemonia do bloco histórico dominante , impedindo qualquer manifestação do chamado pluralismo jurídico ou do uso alternativo do direito, institutos que normalmente prestigiam expressões das classes excluídas do processo jurídico de elaboração de leis.

Pois bem, um dos reflexos da aplicação cega da fria e abstrata norma jurídica, ou, em outras palavras, da aplicação dogmática da lei, de maneira supostamente imparcial e eqüidistantes dos conflitos sociais, além de gerar uma torpe e institucionalizada reprodução dos interesses da classe dominante, previamente consolidados na norma jurídica, consolida entendimentos jurisprudenciais que não prestigiam a dialética dos operadores do direito e os anseios democráticos daquelas minorias excluídas do processo jurídico de elaboração de leis.

Com relação a esse particular destaco decisão do pleno do Tribunal Superior Eleitoral, no âmbito da Representação de nº 200285, procedente de Brasília/DF, de relatoria do Ministro Joelson Costa Dias, figurando como representante o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU Nacional) e como representada a Rádio e Televisão Bandeirantes Ltda, donde aquele organismo pleiteava ser assegurada a participação de seu candidato à presidência da República (Zé Maria de Almeida, pleito de outubro/2010) em debate promovido por esta emissora em 05/08/10 (áudio e ata do julgamento disponível no sítio do TSE).

A decisão que negou o pedido antecipatório de tutela, o voto do relator, o parecer do Ministério Público e a decisão do plenário, por unanimidade, apontaram no sentido da improcedência do pedido formulado pelo partido político.

Os fundamentos que jogaram por terra os argumentos do partido representante foram jus positivos, ou seja, aplicação fria do disposto no artigo 46, caput, da Lei 9.504/97, a seguir transcrito, sem se considerar na época os anseios da sociedade civil por mais democracia no processo eleitoral.

Art. 46. Independentemente da veiculação de propaganda eleitoral gratuita no horário definido nesta Lei, é facultada a transmissão, por emissora de rádio ou televisão, de debates sobre as eleições majoritária ou proporcional, sendo assegurada a participação de candidatos dos partidos com representação na Câmara dos Deputados, e facultada a dos demais, observado o seguinte:

(...)

O sistema positivo informa que as emissoras somente são obrigadas a convidar candidatos aptos de partidos com representação na Câmara dos Deputados, e que tenham requerido o registro da respectiva candidatura na Justiça Eleitoral.

O PSTU não possui representante na Câmara dos Deputados. Aliás, dois terços dos candidatos à presidência da república do pleito de outubro/2010 também não possuem representantes nesta casa. A escolha dos principais candidatos fica à mercê dos interesses das emissoras de comunicação, que possuem o dever de convidar para debates somente aqueles candidatos cujos partidos possuem representação na Camara dos Deputados.

Assim, sem adentrar no mérito das razões invocadas por ambos os litigantes no exemplo em apreço, temos que o sistema positivo faz excluir do processo eleitoral minorias (ou maiorias?) que disputam a vitória no próprio processo eleitoral, sacramentando, pois, o status quo ante da política tupiniquim, o que sem dúvida alguma ajuda a manter a hegemonia do bloco histórico atualmente no poder, através de uma interpretação mecanicista, que na atividade do jurista faz prevalecer o elemento declarativo sobre o produtivo ou criativo do direito.

Nota-se que a permanência no poder é algo protegido pela legislação positiva, indo de encontro aos próprios fundamentos da república e da democracia. Em verdade, trata-se de discriminar pequenos partidos a ponto de restringir sua participação no processo eleitoral, eis que não possuem eles garantida sua aparição na grande mídia – repita-se porque oportuno: dois terços dos candidatos estão formal e legalmente excluídos da eleição de novembro/2010, com aparição tão somente na propaganda eleitoral gratuita – que também possui discrepância na distribuição de tempo na televisão.

Como já informado, referidos candidatos ficam à mercê dos interesses dos veículos de comunicação, que possuem a discricionariedade de convidá-los ou não para participarem de eventos por elas promovidos, privando informações aos telespectadores e manipulando a opinião pública.

Suponhamos que certo candidato fosse filiado a um partido que não tenha representação na Câmara dos Deputados, e que este mesmo candidato esteja em primeiro, segundo ou terceiro lugar nas pesquisas eleitorais para um cargo qualquer. Pela legislação positiva, não há obrigatoriedade dos veículos de comunicação em convidá-lo a participar de eventos eleitorais por esses próprios veículos promovidos, o que pode acarretar distorções no efetivo pleito, eis que diminui sobremaneira o espaço real do referido candidato na mídia.

Assim, temos que o método legal ditado pelo artigo 46 da Lei 9.504/97 está equivocado, devendo ser revisto, sendo despiciendo para tanto desenvolver tese de inconstitucionalidade do dispositivo em destaque – aliás, como bem sugerido pelo relator Joelson Costa Dias – eis que atenta contra legítimos anseios – democráticos, por sinal – da maioria dos partidos envoltos no processo eleitoral e da própria sociedade civil organizada e consciente.

A lei não reflete a Justiça. Pelo contrário. Como já informado, a aplicação dogmática da norma, de maneira supostamente imparcial e eqüidistante dos anseios sociais, é a reprodução dos interesses da classe dominante, previamente consolidados na lei – no caso, a perpetuação do poder – servindo o Poder Judiciário como autêntico aparelho ideológico do Estado.

À guisa de arremate, temos que a norma cria uma hecatombe distorção no processo eleitoral, na medida em que 80% dos brasileiros se informam sobre a eleição pela TV, local onde a presença de candidatos sem representação na Câmara dos Deputados não está assegurada em eventos promovidos pelos veículos de comunicação.

Com a bênção da legislação pátria, a perpetuação dos candidatos e partidos no poder está assegurada ou no mínimo incentivada, implicando, pois, em inaceitável método que vai de encontro aos mais basilares princípios de qualquer nação que se diga democrática.

NOTAS:

COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia. Ed. Saraiva, 15ª Edição, 2000, p. 189.

Segundo Gramsci, o bloco histórico realiza-se quando um grupo social, originado de uma atividade econômica, consegue impor a sua hegemonia sobre os demais grupos sociais, criando um consenso ao redor de seu projeto de sociedade, e da sua concepção do mundo.

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