Esboços sobre a democracia e o medo.

I. A democracia.

Democracia é uma palavra de origem grega que significa poder do povo (demo, ‘povo’, cracia, ‘poder’). A democracia direta dos antigos, consubstanciada na experiência ateniense dos séculos V e IV a. C., caracterizava-se por seu assembleísmo, vale dizer, pela participação direta dos cidadãos nas assembléias populares, locais de deliberação soberana ilimitada acerca dos rumos políticos da cidade. Essa participação direta da gestão da coisa pública denomina-se democracia direta.

Face à complexidade dos atuais Estados modernos, bem como aos extensos territórios e as numerosas populações, restou impossível a reunião de todo o povo em assembléias para a tomada de decisões políticas, tornando-se inviável, pois, a proposta dos próprios cidadãos exercerem o poder. Em virtude desses estorvos criou-se o chamado sistema representativo, pedra de toque da democracia liberal burguesa, radicada em bases econômicas capitalistas. Referido mecanismo permite o exercício do poder pelos ‘representantes’ do povo, por este escolhidos. A ficção da representação, segundo Hans Kelsen, nada mais é do que um enfraquecimento considerável do princípio de autodeterminação política dos povos[1].

As formas e os meios de participação e exercício indireto do poder, existentes particularmente no Brasil, embora necessários, são insuficientes para estruturar relações democráticas nas sociedades complexas[2]. Tanto é assim que a democracia representativa, fundada na filosofia liberal capitalista, apresenta contradições que geram os pressupostos de sua própria superação, na medida em que contribui para a perpetuação do bloco histórico previsto por Antonio Gramsci[3]. Principalmente após a chamada revolução industrial, as mudanças sócio-econômicas ocorrem rapidamente em um cenário de crises cíclicas que apontam exatamente as iniqüidades do sistema e revelam a divisão da sociedade em classes com interesses nitidamente contrapostos. O modelo liberal clássico não atende às exigências sociais, que se avolumam. O sistema representativo, neste esteio, acentua o divórcio com a base. O cupulismo, clientelismo, o fisiologismo, o populismo são as patologias mais conhecidas da prática política. Aliás, Jean-Jacques Rousseau, em seu Contrato Social, já havia dito que o poder soberano do povo é intransferível e que só pode ser exercido diretamente pelo próprio povo. Não é preciso muito esforço para compreender que a verdade é singela como a rosa e límpida como a água da fonte: os ‘representantes’ do povo detém o poder em seu próprio nome, e não em nome dos representados.

II – O medo.

Creio ser o medo, no contexto inoficioso da democracia representativa, um instrumento de dominação política. Questões como insegurança, violência e criminalidade vêm ganhando destaque nas discussões atuais, na imprensa (que promove campanhas maciças de pânico social), nas universidades, enfim, no cotidiano das pessoas. Hoje mesmo vi uma matéria em um jornal televisivo que tratava sobre o boom do mercado da segurança privada. E, na realidade, a industria da segurança – grades, seguros, alarmes, ofendículos em geral – na maior parte das vezes fornece mais proteção simbólica do que real.

Pois bem, em uma democracia os homens simplesmente concordam em agir em comum, o que não necessariamente significa pensar da mesma maneira. Justamente porque um pensamento coletivo é impossível, uma democracia permeada pelo medo generalizado da criminalidade violenta é paradoxal, o que denuncia a tirania política disfarçada ou invisível[4] por detrás da democracia representativa. Essa cultura do medo, por outro lado, possui raízes fincadas em um excessivo individualismo próprio do liberalismo moderno, que promove, cada vez mais, o distanciamento entre os indivíduos.

Trancadas em casa, seja na favela ou no bairro de classe média ou nobre, as pessoas deixam de se organizar, pouco participando das decisões políticas locais que afetam suas vidas e pouco convivem entre si, deixando um vácuo democrático ocupado pela dita representatividade, que, há tempos, prima por medidas simbólicas cada vez mais autoritárias, notadamente na elaboração de leis cada vez mais punitivas, legitimadas por demandas sociais de proteções reais e imaginárias, principalmente da elite detentora de capital[5]. A cultura do medo legitima discursos oficiais de políticos, imprensa (e principalmente da imprensa), chefes religiosos e de personalidades diversas sobre o aumento da violência e da criminalidade como resultado de uma sociedade transviada. É o medo do crime como um conjunto de manifestações culturais usado como instrumento de dominação e perpetuação de uma política basicamente autoritária, baseada no controle social através da violência punitiva.

Temos, como resultado, o fortalecimento de um imaginário da ordem (ditada pelo recrudescimento da lei), justificando uma dominação autoritária em potencial, uma diminuição dos espaços sociais, um isolamento gradativo e voluntário das vítimas prováveis, cujo resultado pode servir como incentivador do individualismo e do isolamento social – este ocupado pela danosa representatividade.


[1] KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Ed. Martins Fontes, p. 413.
[2] Para Marcelo Goulart, não basta o periódico exercício do direito de eleger os chamados ‘representantes do povo’ vinculados a partidos políticos. Impõe-se, concomitantemente, a abertura do espaço público aos organismos populares de democracia de base, aos grupos sociais intermediários (sindicatos, associações de classe, de defesa do meio ambiente, dos consumidores, da mulher, de moradores de bairro, etc.), os quais, em constante mobilização, permitirão a adequação necessária de ação dos detentores do poder às exigências do povo e, conseqüentemente, a diminuição das ‘distâncias sociais’. GOULART, Marcelo Pedroso. Ecologia e Democracia.
[3] O ‘bloco histórico’ realiza-se quando um grupo social, originado de uma atividade econômica, consegue impor a sua hegemonia sobre os demais grupos sociais, criando um consenso ao redor do seu projeto de sociedade, e da sua concepção de mundo.
[4] PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo. São Paulo, 2003. Revista IBCCRIM, p.96.
[5] “O uso da força física tem sido monopolizado pela organização política e pelos poderes instituídos, que, sob a aparência de neutralidade, exercem, legalmente, uma violência abstrata: centralizando tudo o que é da ordem do policial, do militar e do fiscal, tentam estabelecer uma normalidade asséptica, domesticando a paixão e a agressividade” (PORTO, Maria do Rosário Silveira; TEIXEIRA, Maria Cecília Sanches. Violência, insegurança e imaginário do medo. Cadernos CEDES, Campinas, vol. 19, nº 47, dez. 1998).

Um comentário:

  1. A verdadeira democracia é a direta, a participativa. Exercida de baixo para cima, tendo por instrumento os conselhos de base ("sovietes"). Há que se fazer uma nova Teoria Geral do Estado, que supere as construções teóricas ilumino/liberais dos sécs. XVII-XVIII.

    O medo como instrumento de classe? Com certeza. De forma explícita, nos governos auto/ totalitários ("Um estrangeiro, voltando de uma viagem ao Terceiro Reich/ Ao ser perguntado quem realmente governava lá, respondeu:/O medo", Brecht, "Os medos do regime") e implícita, nas "democracias" burguesas, a cultura do medo existe para amansar, para subjugar.

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