I – O trabalho.
A utilidade do escravo é semelhante à do animal. Ambos prestam serviços corporais para atender às necessidades da vida. A natureza faz o corpo do escravo e do homem livre de forma diferente. O escravo tem o corpo forte, adaptado naturalmente ao trabalho servil. Já o homem livre tem o corpo ereto, inadequado ao trabalho braçal, porém apto para a vida do cidadão[1]. Esta passagem exprime a concepção aristotélica sobre o trabalho, que desde priscas eras permeou a humanidade e que, graças à evolução humana, já não se faz atual; São Tomás de Aquino se referiu ao trabalho como um bem árduo, por meio do qual cada indivíduo se tornaria um homem melhor; Para o cristianismo medieval, o trabalho passou a ser visto como uma forma de sofrimento que serviria como provação e fortalecimento do espírito para se alcançar o reino celestial; Na Europa, a partir do século XVI, com a ascensão social da burguesia e o desenvolvimento do protestantismo, o trabalho foi revalorizado, e o lucro significou sinal da bênção de Deus. Max Weber, em sua obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, trouxe à baila a relação entre a ética protestante – que valoriza o trabalho – e o desenvolvimento do capitalismo nos países onde predominava o protestantismo; Hegel, por sua vez, definiu o trabalho como elemento de autoconstrução do homem, destacando o aspecto positivo do trabalho, isto é, o fato de o homem não apenas se formar e se aperfeiçoar, mas também e principalmente se libertar, pelo domínio que exerce sobre a natureza ao desempenhar o labor; Tal como Hegel, Karl Max também resguardou esse aspecto fundamental do trabalho, todavia destacou seu lado negativo nas sociedades capitalistas, questionando a suposta liberdade do trabalhador assalariado – compelido a vender sua força de trabalho para sobreviver, eis que única opção existente, além de revelar as condições aviltantes a que eram submetidos os trabalhadores no processo de produção e os corolários danosos destas circunstâncias sobre suas vidas. Desvendou, pois, o processo de alienação que se desenvolveu a partir do trabalho assalariado nas sociedades cujo modo de produção era o capitalista.
II – A alienação.
Provinda do léxico latino, a palavra alienare significa tornar algo alheio a alguém, ou seja, tornar algo pertencente a outro. Atualmente, referido termo possui variados significados. Em direito, alienação significa todo e qualquer ato que possui o efeito de transferir o domínio de uma coisa para outra pessoa. Tambem indica o ato pelo qual se cede ou transfere um direito pertencente ao cedente ao transferente; Em psicologia alienação significa o estado patológico do indivíduo que se tornou alheio a si próprio, sem contato consigo mesmo ou com o meio social com o qual vive; O significado que aqui se adota é o significado utilizado pela linguagem filosófica contemporânea, que prescreve que a alienação é o processo pelo qual os atos de uma pessoa são governados por outros e se transformam em uma força estranha colocada em posição superior e contrária a quem a produziu. Hegel previu a alienação como sendo o processo pelo qual os indivíduos colocam suas potencialidades nos objetos por eles criados, em verdadeira exteriorização da criatividade humana, da capacidade de construir obras no mundo. Desta forma, o mundo da cultura seria uma alienação do espírito humano, uma criação do homem, que nela se reconheceria. Marx, entretanto, identificou no processo de exteriorização da criatividade humana dois momentos distintos. O primeiro momento, o qual chamou de objetivação, diz respeito à capacidade do homem de se exteriorizar nos objetos e nas coisas que cria, algo próprio do saber-fazer humano, nos moldes da filosofia hegeliana. O segundo momento identificado por Marx, denominado alienação, seria aquele em que o homem, principalmente no modo de produção capitalista e no sistema consumista de produção de mercadorias, após transferir suas potencialidades para os seus produtos, não os identifica como obra sua, como algo seu. Os produtos não pertencem a quem os produziu, seja no plano econômico, psicológico ou social, muito pelo contrário. Ele se referiu ao processo de perda de si mesmo que o trabalhador experimenta em relação ao produto de seu trabalho. Como conseqüência, a produção econômica transformou-se no objetivo do homem, em vez do homem ser o objetivo da produção. Temos como corolário deste processo produtivo o surgimento do chamado taylorismo (criado por Frederick Taylor, 1856-1915), modo de produção que exprime a fragmentação do trabalho, que necessariamente conduz a uma fragmentação do saber, eis que se perde a noção de conjunto do processo produtivo. Explico. O taylorismo significou uma intensificação da divisão do trabalho, fracionando etapas do processo produtivo de modo a fazer que o trabalhador desenvolvesse tarefas ultras especializadas e repetitivas, não conhecendo o conjunto da obra que produzia. A título de curiosidade informo que Henry Ford (1863-1947) foi o primeiro a colocar em prática a filosofia de Frederick Taylor, criando o que se chamou de fordismo, modelo de produção que após grande ascensão entrou em crise e foi substituído pelo modelo japonês chamado toyotismo.
III – A advocacia moderna.
Pois bem, fato é que a advocacia do século XVI caminha para a massificação – se é que já não está massificada. Aquele profissional solitário, pensante e meditativo, para o qual são encaminhados todos os entreveros da vida cotidiana, para que ele, com o uso de seus bons ofícios, de sua razão, sua prudência, zelo e seus profícuos estudos do caso prático, resolva a controvérsia da melhor maneira possível, está perdendo espaço para as grandes corporações, os grandes escritórios de advocacia, suntuosos, imponentes, especializados nas mais diversas áreas do conhecimento jurídico e patrocinadores de elevados números de ações judiciais. No entanto, o fenômeno da massificação que atualmente se verifica e que ironicamente é sinônimo de excelência profissional esconde uma grave deficiência estrutural de difícil percepção, que presente está na maioria dos magníficos escritórios. Falo das condições de trabalho dos advogados empregados, que desempenham função semelhante à espinha dorsal do corpo humano. Essas condições de trabalho nos remete à teoria desenvolvida por Frederick Taylor (taylorismo), eis que presente a fragmentação do trabalho, com a conseqüente fragmentação do saber. Explico. Normalmente os aparatosos escritórios de advocacia são divididos por áreas ou equipes, responsáveis por determinadas matérias específicas. Não bastasse, muitas vezes nestas áreas/equipes ainda há divisão por tarefas. (Exemplo: na área trabalhista normalmente existe o setor de reclamações trabalhistas, o de contestações, o de execução, o de audiência, etc., e assim por diante nas mais diversas áreas do direito). O profissional que as integra, por sua vez, fica limitado em relação ao macro sistema jurídico, eis que restrito a um universo de micro informação e trabalho, o que, conseqüentemente, gera ênfase nas tarefas, objetivando o aumento da eficiência a nível operacional. O advogado empregado, na verdade um operário sui generis, na maioria das vezes desempenha uma tarefa específica, que ao longo do tempo torna-se repetitiva, perdendo o advogado mais incauto a noção do conjunto do processo produtivo. Esta forma de organização objetiva a isenção de movimentos inúteis ao advogado empregado, permitindo a ele a execução de tarefas de forma mais simples e rápida, em um tempo médio, aumentando a produção dos escritórios de forma eficiente no patrocínio de processos em massa. Esta é a tônica: economizar tempo e aumentar a produtividade. Assim sendo, a elevada quantidade de processos patrocinados pelos grandes escritórios não seria um empecilho operacional, eis que o sistema de produção criado por Taylor vem justamente a calhar nesta massificação da advocacia moderna, com o aumento do rendimento dos advogados empregados, produzindo mais em menos tempo, eis que divididos por setores, e, nos setores, divididos por funções. Se, por um lado, a massificação permite aos grandes escritórios o patrocínio de um excessivo volume de processos, por outro, pode levar à piora na qualidade dos serviços, por mais especializados que sejam. Isto porque o motor dos escritórios, o advogado empregado, com o grande volume de processos a si confiados, e, não raras vezes, com a baixa contraprestação recebida ou com a falta de reconhecimento, perde o que de mais essencial e bonito existe na advocacia, que é o processo criativo, que necessariamente implica em tempo para o estudo da casuística, da doutrina e da jurisprudência, bem como a criação de novas teses processuais e de mérito. Além disso, há o pormenor de que a situação desgastante do excesso de trabalho e rotina proporcionada pelo novo taylorismo fatalmente fulmina com o envolvimento afetivo e intelectual do advogado-operário para com o produto do seu trabalho, relação que torna-se cada vez mais fria, monótona e apática. Eis ai a diferença crucial da advocacia artesanal – aquela desenvolvida pelo profissional solitário, que não ousa emprestar seu nome para um trabalho desenvolvido por outrem – da advocacia massificada. Entrementes, é verdade que esta massificação da advocacia é um processo que bem se encaixou nas necessidades do atual mundo globalizado e corporativo, todavia, penso que a virtude desta nobre profissão está justamente no artesanato que é cada processo, um objeto único, que deve ser trabalhado com amor e esmero, por mais corriqueiro que seja o problema nele tratado. Enfim, ao executar a rotina do trabalho, o advogado que vendeu sua força de trabalho se submete ao sistema de produção dos grandes escritórios, e na maioria das vezes não desfruta dos benefícios amplos da sua atividade e, às vezes, não dedica-se ao máximo na defesa dos direitos que lhe são acreditados, eis que alienado está do produto de seu trabalho, o que certamente prejudica o resultado final, ainda que haja supervisão ulterior. Eis, em breves notas, a alienação presente na moderna advocacia, onde o escritório torna-se verdadeira empresa, e, como tal, não mede esforços para manter seu fluxo de caixa, mesmo que tenha que alienar o advogado empregado.
(...)perde o que de mais essencial e bonito existe na advocacia, que é o processo criativo(...)
ResponderExcluirEros Grau, o ministro do STF, diz que há escritórios-empresas verdadeiras "linhas de produção industrial jurídica", tendo a frente os "pequenos mandaletes do mercado". No pólo oposto, há os autenticamente advogados, os "artesãos da advocacia".
É pena que o futuro pertença justamente aos mandaletes do mercado. Sinal desse tempos -como o texto bem apontou- de globalização capitalista. Aquela advocacia romântica, de um Sobral Pinto, é cada vez mais reminiscência do passado.
Ouso ir além: parece-me que o advogado artesão está fadado à penúria. A própria saturação do mercado, nacionalmente, leva a isso. Ou é absorvido pela máquina trituradora de criatividade que são a "linhas de produção industrial jurídica" ou debanda para o concurso público, fomentando, aí, outro universo alienante, o das fábricas modeladoras de mente dos cursinhos.
Que Santo Ivo (padroeiro dos advogados) nos proteja, rsrs